A
noite cai, chega a madrugada e, como tantas outras, moradores de rua
tem o chão e o céu como abrigo... mas naquela madrugada, seria
diferente... pelo menos para os menores que se acostavam nas
proximidades da Igreja da Candelária, ponto turístico e religioso
da cidade do Rio de Janeiro.
Segundo
a advogada Cristina Leonardo, na noite do dia 22 de julho, houve uma
festinha organizada por pessoas que faziam trabalhos sociais – do
qual ela participava – tendo filmado a comemoração. Cerca de 50
jovens dormiam naquele dia e local.
Pouco
mais da meia-noite, no dia 23 de julho de 1993, dois veículos
Chevette, dos quais saíram de um deles quatro homens e, do outro,
mais dois, antagonizaram um episódio de repercussão mundial, que
ficou conhecido como a “chacina da Candelária”.
De
acordo com o relato da Revista Veja – Arquivo Digital Online
(edição 1298, 28 de julho de 1993), um dos homens perguntou a um
garoto se este era o “Russo”... o garoto disse que não conhecia
ninguém com esse nome e que se chamava Marco Antonio. O homem berrou
dizendo que não adiantava mentir, o que assustou outro menor de 17
anos, conhecido como “Caveirinha”, que pôs-se a correr... outro
homem ainda mirou neste, mas o revólver engasgou duas vezes... Marco
Antonio Russo e seus vizinhos de chão foram os primeiros atingidos.
Quase
sempre na cabeça, os tiros mataram três na hora. Um deles chegou a
atravessa a rua cambaleando, mas caiu na grama, em frente à
igreja... Russo, que se chamava Marco Antonio da Silva, levou um tiro
no olho direito e outro na coxa direita; o caçula do grupo, Paulo
Roberto de Oliveira, o “Pimpolho”, que faria 12 anos na semana
seguinte, chegou vivo ao hospital mas morreu em seguida.
Pouco
tempo antes ou depois deste episódio, a cerca de 500m da Candelária,
um dos veículos Chevette abordou três rapazes, os colocou dentro do
carro e jogou seus corpos, baleados, num canteiro em frente ao Museu
de Arte Moderna, localizado a 3km da Candelária. Um dos rapazes
sobreviveu: Wagner dos Santos, de 22 anos, levou uma bala na cabeça,
que se alojou na nuca, a milímetros da coluna cervical.
De
acordo com Wagner, ao prestar depoimento ainda com o rosto deformado
de hematomas, havia quatro homens em um Chevette amarelo... dois
desceram, um deles encapuzado, abriram o porta-malas, pegaram algo
(talvez armas) e encostaram na parede Wagner e seus dois amigos –
Paulo e “Gambazinho”. O encapuzado teria tirado o capuz: era um
homem alto, com um dente da frente quebrado... um dos homens gritou
“é a polícia!”, e deram início a tapas, socos e chutes;
posteriormente, foram colocados no banco de trás do carro.
Um
homem franzino, branco, de nariz afilado, com boné escuro, sentou na
barriga de Wagner e encostou o revólver em sua cabeça. A partir
daí, lembra apenas que viu um dos homens que estavam no banco da
frente, um moreno com cabelo baixo “tipo militar”, dizer “Tu se
lembra de mim, Paulo?”... levou um tiro e desmaiou. Acordou em
frente ao Museu, chutou o pé do companheiro “Gambazinho”, que
não acordou e foi parar num posto de gasolina.
Wagner
tem uma bala alojada na coluna, envenenamento por chumbo
(saturnismo), sequelas físicas e psicológicas, com perda parcial de
visão, audição e paralisia no rosto... sofreu um atentado no dia
12 de setembro de 1994, nos arredores da Central do Brasil, sendo,
então, incluído no Programa de Proteção à Testemunha... foi
levado à Europa pela Anistia Internacional e, atualmente, recebe
cerca de dois salários mínimos mensais do governo do Estado do Rio
de Janeiro (art. 1º da Lei Estadual n. 3.421, de 16 de junho de
2000). Seu depoimento foi fundamental no reconhecimento dos
envolvidos.
Os
demais sobreviventes do episódio na Candelária receberam ajuda de
Yvonne Lofgren, artista plástica casada com um dos sócios da rede
Othon de hotéis.
Segundo
investigações, na quinta-feira à tarde (22/07/1993), um rapaz
conhecido como Neilton, de 19 anos, foi preso na Candelária vendendo
três latas de cola de sapateiro... houve confusão, onde os meninos
de rua jogaram pedras contra um carro da PM, quebrando o vidro
lateral traseiro e ferindo o rosto do soldado Marcus Vinícius
Emmanuel Borges. Os policiais militares levaram Neilton à DP e, no
trajeto, um deles ameaçou: “Se você quiser continuar vivo, passa
a noite fora daqui que o couro vai comer”. Como Neilton tinha as
notas fiscais da compra da cola, foi solto... ao retornar à
Candelária, contou a ameaça à Marco Antonio Russo que, por já ter
sofrido ameaças anteriores, não deu crédito.
Poucas
horas depois, a artista plástica Yvonne Bezerra esteve no local
servindo bolo e refrigerantes para os jovens. Tudo parecia normal. Na
madrugada... a tragédia...
Era
do conhecimento das autoridades que as pessoas na região estavam
incomodadas com a presença daqueles meninos, segundo declaração
prestada na época pelo então Secretário de Polícia Civil, Nilo
Batista. Semanas antes da Convenção sobre Meio Ambiente – ECO 92
– promovida pela ONU no Rio de Janeiro, os menores sumiram do
local... após a Convenção, aos poucos, os menores foram
retornando.
Seguiram-se
as notícias... alguns veículos disponibilizaram telefone para que
denunciassem algo que levasse à prisão dos algozes... na primeira
hora, 25 pessoas ligaram, duas com denúncias sobre a matança... mas
o dobro desses telefonema para festejar, dizendo coisas do tipo
“deviam ter matado todos”, “ainda foi pouco, deviam arrancar a
cabeça deles”. Em um programa de rádio na CBN, apresentado por
Liliana Rodriguez, todos que ligaram apoiaram a chacina...
Os
assassinados têm seus nomes inscritos em uma cruz, localizada em
frente à Igreja da Candelária até os dias de hoje:
→
Paulo
Roberto de Oliveira;
→
Anderson
de Oliveira Pereira;
→
Marcelo
Cândido de Jesus;
→
Valdevino
Miguel de Almeida;
→
“Gambazinho”;
→
Leandro
Santos da Conceição;
→
Paulo
José da Silva;
→
Marcos
Antonio Alves da Silva, o “Russo”.
DADOS
PROCESSUAIS
O
estopim para elucidar os participantes do crime foram os episódios
da prisão de Neilton, vendedor de cola de sapateiros (que, segundo o
Desembargador Muinoz, não era ilegal na época), e Wagner Santos,
sobrevivente da abordagem feita na noite do crime.
O
primeiro identificado foi o então soldado da Polícia Militar,
Marcus Vinícius Emmanuel Borges, da Companhia de Trânsito. Com 26
anos, foi designado para trabalhar no cruzamento das avenidas Rio
Branco e Presidente Vargas. Ele efetuara a prisão de Neilton na
tarde do dia 22 de julho, mas este foi liberado e, segundo Borges,
voltou à rua debochando do policial, que partiu para cima dele, e
acabou ferido. Ao chegar em casa, à noite no Rio Comprido, relatou o
episódio ao irmão, também PM, e a um amigo, o ex-policial militar
Maurício da Conceição, conhecido como “Sexta-Feira Treze”,
chefe de um grupo de extermínio.
Processos
n. 0072471-56.1993.8.19.0001, n. 0056380-85.1993.8.19.0001 e n.
0118130-88.1993.8.19.0001.
Os
dados não se encontram facilmente dispostos para consulta e também
não estão completos. Mencionaremos, então, as informações
veiculadas pela mídia.
Três
foram condenados pelo crime em questão:
→
Marcus
Vinícius Borges Emmanuel: condenado pela primeira vez no ano de 1996
à 309 (trezentos e nove) anos de prisão; ingressou com recurso,
conseguindo reduzir a pena para 89 (oitenta e nove) anos e, com
posterior recurso do Ministério Público, a pena acabou por fixada
em 300 (trezentos) anos de prisão. Cumpriu apenas 18 anos na cadeia
e, através de um indulto, ganhou a liberdade no dia 29 de junho de
2012.
A
defesa de Marcus tentou derrubar a hediondez do delito para que,
dessa forma, o réu pudesse ter direito a esse indulto (Decreto
6.706/2008), visto que o crime foi praticado em 1993, e a lei que
transformou o homicídio qualificado em crime hediondo é a lei n.
8.930/1994.
O
MP recorreu ao STJ que suspendeu o indulto com base no argumento de
que, embora o homicídio qualificado tenha se tornado hediondo a
partir de 1994, o decreto veda expressamente a concessão do
benefício “aos que praticaram crimes hediondos após o advento da
lei n. 8.072/90, observadas as alterações posteriores. Sendo assim,
em decisão proferida no dia 10 de julho de 2013, a Vara de Execuções
Penais do Rio de Janeiro expediu mandado de prisão para Marcus que,
atualmente, se encontra foragido.
→
Marco
Aurélio Dias Alcântara: recebeu a pena de 204 (duzentos e quatro)
anos de prisão e foi acusado também de violentar um dos jovens. Foi
libertado após receber um indulto em 2010.
→
Nelson
Oliveira dos Santos: recebeu a pena de 243 (duzentos e quarenta e
três) anos, mais 18 (dezoito) pela tentativa de assassinato contra
Wagner. Ingressou com recurso conseguindo a absolvição, embora
tenha confessado os crimes; em recurso, o Ministério Público
reverteu a situação, e Nelson acabou condenado a 27 (vinte e sete)
anos pelas mortes, mantendo a pena de 18 (dezoito) anos pela
tentativa contra Wagner, totalizando 45 (quarenta e cinco) anos de
prisão. Segundo notícias, encontra-se em liberdade condicional por
outros crimes.
Seu
depoimento em abril de 1996, onde confessou sua participação no
crime, confirmou também como responsáveis Marcus Vinícius Borges
Emmanuel, Marco Aurélio Dias de Alcântara, Arlindo Afonso e
Maurício da Conceição. Em contrapartida, inocentou os então
acusados Cláudio dos Santos, Marcelo Cortes e o serralheiro Jurandir
Gomes França.
Todos
perderam seus cargos na polícia militar. Outros indiciados pelo fato
foram:
→
Maurício
da Conceição, ex-policial militar, conhecido como “Sexta-Feira
Treze”: acusado, morreu durante as investigações.
→
Arlindo
Lisboa Afonso Junior: recebeu 2 (dois) anos de prisão por ter em seu
poder uma das armas usadas no crime. No dia 28 de março de 2001 teve
a extinção da punibilidade pela prescrição.
→
Carlos
Jorge Liaffa: não foi acusado embora tenha sido reconhecido por um
sobrevivente e a perícia ter comprovado que uma das cápsulas que
atingiu uma das vítimas foi disparada pela arma de seu padrasto.
Uma
das vítimas sobreviventes da chacina da Candelária, Sandro
Nascimento, protagonizou outro episódio violento no dia 12 de junho
de 2000, o “sequestro do ônibus 174”, que ensejou um
documentário e um filme onde foi mencionado o caso em comento.
Filme
“Última Parada 174”:
Reportagem
sobre o reconhecimento de 2 policiais:
Reportagem
sobre o caso, com depoimento de Wagner (20 anos após o caso):
Fonte:
Arquivo Veja Digital
Globo
Online – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
Folha
de São Paulo – Dom Total
Rede
Contra a Violência
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