O
Massacre de Haximú, em Roraima, no ano de 1993, foi um episódio que
marcou os tablóides brasileiros e internacionais, com o assassinato
de 16 (dezesseis) índios Yanomamis, caso levado à Corte
Interamericana de Direitos Humanos (conseguimos a petição de
arquivamento, em julho de 2001 – dá pra ter ciência do histórico
processual do caso – acesse o link: http://sdrv.ms/Y5WosR).
Leiam abaixo parte do texto escrito pelo antropólogo Bruce Albert, em 27/09/1993, e publicado na Folha de São Paulo em 10/10/1993, que relata os acontecimentos que antecederam o massacre, bem como o mesmo:
(…) Em meados de 1993 (...) eram cada vez mais frequentes as visitas dos índios aos garimpos em busca de comida e objetos. Numa ocasião, dois donos de balsa prometeram rede, roupa e munição a um jovem líder da comunidade. Mais uma vez a promessa não foi cumprida e este foi tomar satisfações no barracão de um desses empresários. Discutiu com um empregado e acabou por afugentá-lo com um tiro de espingarda. Com o barracão vazio, o índio e seus companheiros cortaram os punhos das redes, jogaram lona e cobertores no mato e levaram rádio e panelas. Depois deste incidente, os garimpeiros decidiram matar os índios se estes voltassem a incomodá-los. Em atritos anteriores, por medida de segurança, já haviam se reapossado de uma espingarda que tinham dado aos índios.
A
partir do dia 15 de julho os fatos se precipitam. Um grupo de seis
rapazes de
Haximu chega a outro barracão na área para pedir comida, bens de
troca e, quem sabe, levar de volta a espingarda, conforme
recomendação de seus parentes mais velhos. Recebem apenas alguma
comida e um bilhete para ser entregue em outro barracão rio acima,
com a promessa de que lá eles obteriam mais coisas. No barracão
seguinte, encontram uma turma de garimpeiros jogando dominó. São
recebidos por uma cozinheira que lê o bilhete, joga-o no fogo e
bruscamente manda-os embora com mais alguns mantimentos e roupa. O
bilhete dizia: "Faça bom proveito desses otários". Com
esse sinal e estimulados por ela, os garimpeiros desse barracão
chegam a cogitar de matar os seis rapazes ali mesmo, mas desistem
temendo que outros índios estivessem escondidos nas redondezas.
Decidem então atacá-los já na trilha de volta às malocas.
Depois
de caminhar menos de uma hora, os rapazes Yanomami param para comer o
que receberam nos barracões. Chegam então cinco ou seis garimpeiros
armados que os convidam para ir caçar anta e visitar um outro
barracão. Os índios estranham o convite, primeiro recusam, mas
acabam aceitando diante de tanta insistência. Forma-se uma fila
indiana tendo na frente um Yanomami seguido de garimpeiros e índios
alternadamente. Um pouco adiante, o último Yanomami sai da fila para
defecar; passa sua espingarda - a única dos rapazes - para outro
Yanomami, e se embrenha no mato dizendo aos outros para seguir
adiante. Mas os garimpeiros ficam parados. Bruscamente, um deles
imobiliza o braço do índio que segura a arma e atira à
queima-roupa em seu ventre com uma espingarda de dois canos serrados.
Mais três índios são a seguir fulminados pelos outros garimpeiros.
Um dos assassinos contará depois a um companheiro que um dos rapazes
se agachou com as mãos no rosto e, tentando escapar da morte,
suplicou: "garimpeiro amigo!". Foi sumariamente executado
com um tiro no rosto.
O
Yanomami que estava no mato, ao escutar os tiros, joga-se no rio
Orinoco ali perto e consegue fugir. O jovem de 18 anos que encabeçava
a fila também tenta escapar, mas vê-se encurralado entre três
garimpeiros que, dispostos em triângulo, se revezam em atirar no
rapaz como se fosse tiro ao alvo. Graças à sua agilidade e ao
emaranhado da mata naquele local, o rapaz consegue desviar-se dos
dois primeiros tiros, mas é ferido pelo terceiro. Enquanto os
garimpeiros recarregam as armas, ele escapa e se joga também no rio
Orinoco. Atordoado, tenta se esconder, ficando submerso até o nariz.
Dessa posição ele vê os garimpeiros enterrar três dos mortos (a
quarta vítima nunca chegou a aparecer; mortalmente ferido,
provavelmente caiu no rio e foi levado pela correnteza). De repente,
à procura de corpos, um garimpeiro desce até o rio e o vê
escondido; volta para buscar uma arma, mas o jovem consegue
finalmente fugir. Enquanto isso, o outro sobrevivente chega às
malocas do Haximu com a notícia dos assassinatos.
Cerca
de dois dias depois, volta com um grupo de homens e mulheres ao local
onde ficaram os corpos de seus parentes. A meio caminho encontram o
adolescente ferido que lhes relata o que viu, inclusive o local onde
os cadáveres foram enterrados (essa prática, aliás, é considerada
pelos Yanomami como uma profanação). Desenterram os três corpos,
procuram o quarto em vão, e levam os despojos para serem cremados a
cerca de uma hora e meia de caminhada, mata a dentro. Coletam os
ossos carbonizados necessários para oficiar os seus ritos funerários
e voltam para casa.
Nos
dias que se seguem, organizam a caçada ritual que precede a
cerimônia de preparação das cinzas mortuárias (os ossos são
pulverizados e guardados em cabaças lacradas com cera de abelha).
Depois da caçada (que dura de uma semana a dez dias), são
convidadas três aldeias aliadas: Homoxi, Makayu (maloca do Simão) e
Toumahi. Terminada a preparação das cinzas, forma-se um grupo de
guerreiros para levar a cabo a tradicional incursão de vingança
contra os assassinos. Deve-se enfatizar que a tradição Yanomami
exige que mortes violentas sejam vingadas com ataques guerreiros onde
os alvos são os homens, de preferência os mesmos que perpetraram as
mortes anteriores. Nunca se mata mulheres e crianças.
A
26 de julho, depois de dois dias de caminhada, o grupo de guerreiros
acampa nas imediações do garimpo. às dez horas da manhã seguinte,
embaixo de chuva, chegam à cozinha de um barracão onde avistam
apenas dois homens que conversavam em volta do fogo. Um dos Yanomami
esgueira-se por detrás de uma árvore e atira. Acerta um dos
garimpeiros com um tiro de espingarda na cabeça, matando-o na hora;
o outro foge, mas é ferido nas costas e nas nádegas. Os guerreiros
continuam sua vingança partindo a cabeça do morto com golpes de
machado, atiram flechas no cadáver e, antes de fugir, apanham tudo
que encontram no barracão, inclusive cartuchos e a espingarda do
morto.
Preparando
o ataque
O
ataque dos índios enfurece os garimpeiros. Enterram o morto na
cozinha do barracão que é então abandonado, levam o ferido para
uma pista de pouso a dois dias de caminhada e começam a planejar a
retaliação. Fazem duas reuniões onde decidem pôr fim ao assédio
dos índios, matando todos os moradores das duas malocas que
constituem a comunidade de Haximu, num total de 85 pessoas. Recrutam
homens de vários barracões e juntam armas e dez caixas de cartucho.
Toda essa operação foi patrocinada, se não encomendada, pelos
quatro principais empresários dos garimpos daquela região.
Para isso liberaram seus empregados, forneceram munição, armas e
abrigaram as reuniões preparatórias para o ataque. Esses quatro
empresários de garimpo, alguns deles bem conhecidos no Estado de
Roraima, são: João
Neto,
proprietário rural; seu cunhado Chico
Ceará;
Eliezio,
também dono de uma cantina; e Pedro
Prancheta,
o autor do bilhete que, como todos os demais, é dono de balsa.
Quatorze garimpeiros, fortemente armados (espingardas de calibre 12 e
20, revólveres 38, terçados e facões) põem-se a caminho para
executar o plano. Entre eles estão vários que participaram do
assassinato dos rapazes de Haximu, além de quatro pistoleiros que
haviam sido contratados para garantir a segurança dos empresários.
Enquanto
isso, os habitantes de Haximu deixam as malocas e acampam na mata a
uma distância segura de contra-ataques. Ficam aí uns cinco dias.
Como esperam o convite da comunidade de Makayu (maloca do Simão),
para uma festa, eles iniciam a viagem em direção àquela maloca. No
caminho pernoitam em suas duas malocas. Na manhã seguinte, a maioria
continua a caminhada até uma roça velha entre Haximu e Makayu. Aí
ficarão aguardando, como de praxe, o convite formal trazido por
mensageiros de seus anfitriões, enquanto três jovens guerreiros
voltam para atacar de novo os garimpeiros, por estarem insatisfeitos
com a tentativa anterior de vingança. O irmão do morto
desaparecido, líder dos três rapazes, tinha especial empenho em
vingar a morte do irmão precisamente porque o corpo nunca fora
encontrado, impossibilitando a realização de um funeral apropriado.
Chegam a um barranco de garimpo e, protegidos pelo barulho das
máquinas, esgueiram-se até um garimpeiro que estava trabalhando e
atiram. O homem pressente-os e consegue proteger a cabeça; sai
ferido apenas no braço que lhe serviu de escudo. Os três razapes
fogem e juntam-se aos seus parentes de Haximu na roça velha. Esse
ataque ocorre ao mesmo tempo em que os quatorze garimpeiros estão a
caminho das malocas de Haximu, a dois dias a pé de seus barracões.
Índios e garimpeiros só não se cruzam porque em expedições de
guerra os Yanomami evitam as trilhas, andando pela mata fechada.
Chegando
a Haximu, os garimpeiros encontram as malocas vazias. Amontoam os
utensílios domésticos que ficaram e despejam sobre eles uma grande
quantidade de tiros de revólver e espingarda. Incendeiam as duas
malocas, encontram a trilha que leva à roça velha, e prosseguem no
encalço dos índios.
Entrementes,
no dia anterior, os habitantes de Haximu acampados na roça velha já
haviam recebido o convite formal de Makayu. Por estarem em pé de
guerra, querem abreviar ao máximo a sua estada naquela maloca.
Resolvem que apenas os homens e algumas mulheres sem filhos seguirão
para lá imediatamente em companhia dos mensageiros, deixando na roça
velha todas as mulheres com crianças, além de três homens já
velhos e pouco ágeis. Por duas razões essas pessoas ficam no
acampamento: por seu ritmo lento de viagem e pelo fato de que
mulheres e crianças têm sempre salvo conduto em incursões
guerreiras. Pela
lógica social Yanomami, elas estariam perfeitamente seguras, mesmo
em caso de ataques inimigos.
Ficam também no acampamento os três jovens guerreiros
recém-chegados que descansam de sua incursão ao garimpo.
O
massacre
Na
manhã do dia seguinte, a maioria das mulheres no acampamento saem
para coletar frutas (ingá) a várias horas a pé da roça velha.
Junto com elas vão quase todas as crianças e o líder de uma das
duas malocas. No acampamento permanecem cerca de dezenove pessoas,
incluindo os três guerreiros que ainda se recuperam. Poucas horas
depois, por volta do meio-dia, os garimpeiros chegam ao acampamento e
o cercam de um lado. Crianças brincavam, mulheres cortavam lenha e
os demais estavam deitados nas redes. Um garimpeiro dispara um tiro e
todos os outros o seguem, abrindo fogo cerrado, ao mesmo tempo em que
avançam para as vítimas. Em meio ao tiroteio, conseguem escapar os
três guerreiros, um homem e uma mulher de meia idade, duas meninas
de seis e sete anos e uma menina de cerca de 10 anos, graças à
complexa disposição dos abrigos e ao emaranhado da vegetação
típica das roças velhas. As duas meninas pequenas e um dos
guerreiros saem feridos com chumbo espalhado pelo rosto, pescoço,
costas e braços; a menina maior recebe um ferimento muito mais grave
na cabeça do qual viria a falecer mais tarde. Do esconderijo, os
fugitivos continuam a ouvir gritos abafados pelo estrondo dos tiros.
Longos minutos depois, os garimpeiros interrompem o tiroteio e entram
nos abrigos para terminar de matar quem ainda está vivo. A golpe de
facão matam não só os feridos mas os poucos que não haviam sido
atingidos; por fim, mutilam ou esquartejam todos os cadáveres
crivados de balas e chumbo.
Ao
todo morreram doze pessoas: um homem e duas mulheres idosos, uma
jovem de Homoxi que estava de visita, três meninas adolescentes, uma
menina de um ano e outra de três e três meninos entre seis e oito
anos; três dessas crianças eram órfãs de pais mortos pela
malária. A mulher de Homoxi, de cerca de 18 anos, foi atingida por
um tiro de espingarda disparado a menos de dez metros e imediatamente
por outro a menos de dois. Uma mulher idosa e cega foi morta a
pontapés e um bebê deitado numa rede foi embrulhado num pano e
trespassado com faca.
Os
garimpeiros dão-se conta de que não exterminaram todos os
habitantes de Haximu. Por isso, levam duas espingardas que estavam
nos abrigos, disparam um foguete para dissuadir possíveis
perseguidores, e correm de volta ao garimpo. Semanas mais tarde,
ouvem pela Rádio Nacional a notícia do massacre. Caminham por dois
ou três dias até à pista de Raimundo Nenê. Ameaçam de morte a
quem os delatar, dizendo aos demais garimpeiros que se estes falassem
"fariam a mesma coisa que fizeram aos índios". Retornam
então para Boa Vista de onde a maioria se dispersa pelo país.
As
cremações
Quando
finalmente cessa o tiroteio, um dos três guerreiros que escapou
ileso do massacre corre até onde as mulheres coletavam ingá, relata
o que aconteceu, manda todos se esconderem, retorna ao acampamento,
procura sua espingarda e não a encontra. Chama então as mulheres e
manda três a Makayu avisar os demais. Elas caminham em disparada
durante várias horas. Chegam aos prantos e em meio a grande comoção,
contam a tragédia e descrevem de forma intensamente dramática como
mulheres e crianças haviam sido mutiladas ou esquartejadas.
Os
homens de Haximu partem imediatamente para o local do massacre em
marcha forçada e ainda conseguem chegar no começo da noite.
Juntam-se aos feridos e demais sobreviventes num clima de choro e
terror misturado aos exaltados discursos de revolta dos líderes. A
escuridão impede que tratem imediatamente dos cadáveres. O forte
cheiro de sangue força-os a passar a noite um pouco afastados da
cena do massacre. A cerca de meia hora do local, abrem uma clareira e
levantam abrigos improvisados. Ao amanhecer, começam a cremação
que seus ritos funerários impõem. Nem o alto risco de serem
novamente atacados pelos garimpeiros suplanta o imperativo de dar um
funeral apropriado a seus parentes. Assim que começam a juntar os
corpos destroçados, surge do matagal ao seu encontro a menina com o
crânio aberto a bala, uivando de dores e pavor, enquanto a mãe
desesperada corre para ela aos gritos.
Começa
a cremação dos corpos, dispostos em posição fetal nas piras
crematórias individuais. Os adultos são imediatamente cremados no
acampamento; os cadáveres dos mais jovens são levados para o abrigo
onde haviam passado a noite e lá também cremados. Mal o fogo
acabara de consumir os corpos, os sobreviventes retiram das fogueiras
os ossos carbonizados ainda escaldantes e os recolhem em cestas e até
em panelas. Inúmeros fragmentos de ossos e alguns dentes ainda ficam
entre as cinzas, alguns com sinais de impacto de projéteis de armas
de fogo.
A
pressa em terminar logo as cremações deve-se à convicção dos
índios de que os garimpeiros voltariam para tentar matar os homens.
É-lhes inconcebível que a morte daquelas mulheres e crianças fosse
considerada pelos brancos como vingança apropriada. A urgência de
fugir é tão grande que deixam sem cremar o cadáver esquartejado da
visitante de Homoxi, que não tinha ali nenhum parente próximo. Uma
cabaça contendo as cinzas de um dos rapazes assassinados no primeiro
ataque havia sido quebrada pelos garimpeiros e as cinzas espalhadas
pelo chão. A mãe do rapaz tenta juntá-las, mas com a pressa deixa
para trás alguns embrulhos de folhas com as cinzas mortuárias que
havia recuperado. As cinzas dos mortos são o bem mais precioso dos
Yanomami; elas ficam sempre aos cuidados das mulheres, que as levam
consigo mesmo quando viajam.
A
fuga
Terminadas
as cremações, os habitantes de Haximu coletam todos os pertences
dos mortos para serem depois destruídos durante os ritos funerários.
Começam então uma fuga de várias semanas pela mata fechada, num
imenso desvio para despistar os garimpeiros, andando muitas vezes à
noite, sem comer, carregando as três meninas feridas. Depois de uns
oito dias de caminhada, param numa aldeia amiga, Tomokoxibiú. Nessa
noite, morre a menina com o crânio aberto. Seus pais carregam o
cadáver pela mata mais um dia antes de cremá-lo no local onde irão
acampar.
Sem
se deter, os fugitivos cruzam mais tarde os caminhos de duas outras
aldeias, Ayaobe e Warakeú. Param numa quarta aldeia, Maamabi. Já
haviam cruzado o Orinoco e, rumo ao sul, aproximam-se da fronteira
com o Brasil junto ao alto Toototobi, no estado do Amazonas. Chegam,
finalmente, à maloca do Marcos no alto Paxotoú, afluente do
Toototobi. Era o dia 24 de agosto de 1993, cerca de um mês depois da
chacina. Os sobreviventes de Haximu escolheram o alto Toototobi como
refúgio por várias razões: é uma área livre de garimpeiros, seus
habitantes são gente amiga a quem visitavam com alguma frequência,
e há também um posto de saúde ao qual já haviam recorrido várias
vezes para se tratar de malária nos últimos três anos.
Ritos
funerários
Quando
pararam nas duas malocas amigas do lado venezuelano e depois, já na
maloca do Marcos, os índios de Haximu foram pulverizando os ossos
dos parentes mortos, guardando-os em cabaças lacradas e
acondicionadas em cestas de trama aberta ou embrulhadas em panos. Nas
grandes cerimônias funerárias intercomunitárias que irão
organizar em homenagem aos mortos, as cinzas dos adultos serão
enterradas junto às fogueiras domésticas de seus parentes e as das
crianças serão tomadas com mingau de banana.
Nessa
ocasião, as cabaças, as cestas e todos os objetos que pertenciam
aos mortos serão queimados ou destruídos. A destruição dos
pertences dos mortos, a obliteração de seus nomes pessoais e o
enterramento ou ingestão de suas cinzas nos
rituais funerários Yanomami têm por objetivo garantir que o
espectro possa viajar definitivamente para o mundo dos mortos nas
"costas do Céu" sem a possibilidade de voltar e atormentar
os vivos.
Para que isso aconteça, é necessário que estes comemorem os seus
mortos até que todas as cinzas acabem, durante sucessivas cerimônias
mortuárias.
É
por isso que o povo de Haximu teve que resgatar os despojos de seus
mortos, mesmo sob a forte ameaça de ataques garimpeiros. Não
fazê-lo seria condenar os espectros a errar entre dois mundos,
assombrando os vivos com uma interminável melancolia, pior que a
própria morte. Os 69 sobreviventes de Haximu, refugiados na maloca
do Marcos, tentam agora reconstruir a vida, com planos de abrir novas
roças e construir novas casas. Entretanto, nos próximos meses, e
durante uma boa parte do próximo ano, sua existência estará
voltada à organização dos funerais de seus parentes mortos na
chacina, e de vários outros que morreram recentemente por malária
contraída dos garimpeiros. O seu luto durará até as cinzas
terminarem, quando então voltarão à normalidade. Mesmo assim,
nunca esquecerão que os brancos são capazes de esquartejar mulheres
e crianças, "como espíritos comedores de gente". Os
guerreiros de Haximu
afirmam
que desistiram de se vingar dos garimpeiros. Poderiam até fazê-lo
quando ainda pensavam que esses brancos eram seres humanos com senso
de honra. Agora duvidam. Os garimpeiros não são sequer dignos de
ser considerados inimigos. Só esperam que os assassinos sejam
"trancados" pelos outros brancos para nunca mais voltar às
suas terras”.
(fim
do relato)
DADOS
PROCESSUAIS
Vinte
e dois garimpeiros foram denunciados pelo crime de genocídio (art.
1º, “a”, “b”, “c” da Lei n. 2.889/56, em concurso
material com crimes de lavra garimpeira, dano qualificado, ocultação
de cadáver, contrabando e formação de quadrilha. Destes, apenas 5
(cinco) foram condenados a 19 (dezenove) anos e 6 (seis) meses de
reclusão (sendo a pena-base de 15 anos de reclusão aumentada por
força de 2 agravantes – arts. 61, II, “c” e 62, I do Código
Penal) pelo genocídio, no juízo singular da Justiça Federal.
Condenados, portanto:
→
Pedro Emiliano
Garcia, o “Pedro Prancheta”;
→
Eliezio Monteiro
Neri;
→
João Pereira de
Morais, o “João Neto”;
→
Juvenal Silva; e
→
Francisco Alves
Rodrigues, o “Chico Ceará”.
Por
entender se tratar de “crime contra a vida”, apelaram da sentença
condenatória, pois, queriam que o genocídio fosse julgado pelo
Tribunal do Júri, recurso conhecido e provido pelo TRF1 que desta
forma também entendeu, ANULANDO a referida sentença.
O
Ministério Público Federal recorreu ao STJ (REsp
222.653/RR,
publicado em 30/10/2000
– link para o acórdão: http://sdrv.ms/14Tf0PK),
que possui entendimento contrário ao TRF1, ou seja, genocídio não
se trata de “crime contra a vida” e, portanto, permanece a
competência do juízo singular. Ademais, este mesmo acórdão
decretou a extinção de punibilidade do réu Francisco por seu
falecimento.
Chegou,
então, ao Supremo Tribunal Federal, por inconformidade das partes
com a decisão proferida pelo STJ – RE
351.487/RR,
decisão de 03/08/2006, Plenário do STF – link para o acórdão:
http://sdrv.ms/14TeCRu.
Uma
verdadeira aula sobre concurso de normas, reformatio in pejus e bem
jurídico tutelado pelo crime de genocídio, abordando o entendimento
de alguns doutrinadores e entendendo por majoritário o
posicionamento de que “a conduta incriminada pode recair sobre o
corpo humano, lesando-o ou extinguindo a vida, mas, perante o nosso
direito positivo, não está aí o bem jurídico tutelado sob a
figura criminosa senão modalidades da prática de genocídio”.
Em
outras palavras, o homicídio, in casu, é modo de execução do
crime de genocídio. E pelo simples fato de nosso ordenamento
jurídico não ter enquadrado o genocídio como “crime contra
vida”, e considerar, como bem jurídico tutelado, não a vida dos
indivíduos, mas sim, a grosso modo, a existência de um grupo, uma
coletividade (o acórdão do STF é interessantíssimo!). Sendo
assim, os réus foram condenados por genocídio, dizimando parte de
uma tribo indígena, sendo aplicada a pena como se tivesse matado 1
(uma) única pessoa (que maravilha!).
Chama
a atenção do Ministro Sepúlveda Pertence – e a desta redatora
também – o fato de que, “se o genocídio absorve os homicídios,
é mais favorável do que a incriminação de homicídios
qualificados, ainda que em continuidade delitiva, quando o parágrafo
único artigo 71 do Código Penal permitiria a aplicação até o
triplo da pena-base”.
Decide
o STF, por unanimidade, que o crime de genocídio permanece como
competência do juízo singular, indeferindo o recurso dos réus e,
como exclusivo destes, impede a “reformatio in pejus”.
Não
encontramos notícia acerca do tempo em que estes permaneceram (e se
permaneceram) presos. No entanto, encontramos Apelação ao TRF1, com
acórdão proferido em 2009 – veja abaixo:
PENAL.
PROCESSO PENAL. GENOCÍDIO E ASSOCIAÇÃO PARA O GENOCÍDIO. ARTS. 1º
E 2º DA LEI 2.889/56. POVOS INDÍGENAS YANOMAMIS. ALDEIA HAXIMU.
LOCALIZAÇÃO. APLICABILIDADE DA LEI BRASILEIRA. COMPETÊNCIA DO JUIZ
FEDERAL SINGULAR. AUTORIA E MATERIALIDADE. COMPROVAÇÃO. CRIME
DE
DANO. OCULTAÇÃO DE CADÁVER. LAVRA GARIMPEIRA E CONTRABANDO.
QUADRILHA OU BANDO. REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA.
I.
A competência para processar e julgar acusados da prática do crime
de
genocídio contra etnia indígena, quando não houver denúncia
também pela prática do crime
de
homicídio, é do juízo federal singular, e não do Tribunal do Júri
Federal, porquanto o objeto jurídico tutelado nesse delito não é a
vida em si mesma, mas, sim, a sobrevivência, no todo ou em parte, de
um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
II.
Independentemente de os fatos terem ocorrido em território
brasileiro ou venezuelano, não está afastada a jurisdição da
Justiça brasileira para julgar o crime
de
genocídio, consoante preceitua a letra d do inc. I do art. 7º do
Código Penal, uma vez que os acusados são brasileiros e
domiciliados no Brasil. Trata-se de caso especial de
extraterritorialidade incondicionada pelo princípio da justiça
universal. Há aplicação da lei brasileira ainda que o agente seja
absolvido ou condenado no estrangeiro, segundo dispõe o § 1º do
art. 72 do Código Penal.
III.
Não sendo possível a realização do exame cadavérico, tendo em
vista que os índios, não se afastando dos seus costumes, queimaram
os corpos de seus entes, pilaram-nos, transformando-os em cinza,
guardando-os em cabaças, a comprovação da morte se dá pelos
depoimentos das testemunhas que viram os corpos estraçalhados à
bala e a facão, o que supre o exame de corpo de delito, consoante
disposto no art. 167 do Código de Processo Penal.
IV.
Prova testemunhal uniforme, precisa, categórica, constante dos
autos, não deixa dúvidas da ocorrência dos fatos, bem como de que
os acusados Pedro Erniliano Garcia, vulgo Pedro Prancheta; Eliézio
Monteiro Nero, vulgo Eliezer; Juvenal Silva, vulgo Curupuru;
Francisco Alves Rodrigues, vulgo Chico Ceará; e João Pereira de
Morais, vulgo João Neto; foram os autores do crime
de
genocídio tipificado no art. 1º, letras a, b e c da Lei 2.889/56.
V.
Inexistindo prova suficiente da participação dos acusados Wilson
Alves dos Santos, vulgo Neguinho, e Waldinéia Silva Almeida,
conhecida por Ouriçada, deve ser mantida a sentença que os absolveu
da prática de tais delitos.
VI.
Diante de exame pericial, nas duas malocas e três acampamentos
(tapiris) utilizados pelos índios, na região de Haximu, o qual
constatou que as cabanas e os tapiris foram destruídos pelo fogo e
por bala e que foram encontrados panelas com perfurações de
projéteis de arma de fogo, cartuchos de arma de fogo deflagrados,
cabelo humano, fragamentos de projéteis encravados em árvores e no
cercado da maloca, caracterizado está o crime
de
dano, previsto no art. 163, incisos I, II, e IV, do Código Penal.
VII.
A prova testemunhal confirma que os acusados praticaram o genocídio
e ocultaram os cadáveres dos índios mortos na chacina,
enterrando-os para que não fossem descobertos, o que caracteriza o
crime
de
ocultação de cadáver.
VIII.
Inexistindo prova dos crimes
de
associação para o genocídio, de lavra garimpeira, de contrabando e
de formação de quadrilha ou bando, deve ser mantida a sentença na
parte em que ABSOLVEU os acusados da prática de tais delitos.
IX.
Fixação do regime inicialmente fechado para cumprimento da pena de
reclusão. A vedação à progressão do regime de cumprimento da
pena para os crimes
hediondos
é inconstitucional. Fere o inciso XLVI do art. 5º da Constituição
Federal. Essa vedação é tão hedionda como o próprio
crime.
A inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90 foi
reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar o HC 82.959-SP.
X. Não sendo conhecido o recurso de alguns dos acusados, estende-se
a estes os efeitos benéficos da apelação conhecida, a teor do art.
580 do Código de Processo Penal. (TRF1. APELAÇÃO CRIMINAL
1997.01.00.017140-0/RR Relator: Juiz Federal Tourinho Neto
Julgamento: 01/09/09)
Em
consulta processual realizada em 12/03/2012, encontramos o referido
complemento a essa decisão de apelação
(http://www.trf1.jus.br/Processos/ProcessosTRF/ctrf1proc/ctrf1proc.php?tipoCon=2&setor=&proc=150500919974010000):
=>
(…) do Ministério Público Federal para condenar os acusados Pedro
Emiliano Garcia, Eliézio Monteiro Neri, Juvenal Silva e João
Pereira de Morais, à pena de 01 (um) ano e 02 (dois) meses de
reclusão e ao pagamento de 12 (doze) dias-multa, por infração ao
art. 211 do CP, mantida a absolvição dos acusados Waldinéia Silva
Almeida e Wilson Alves dos Santos; deu parcial provimento à apelação
de João Pereira de Morais, tão-somente, para fixar o regime
inicialmente fechado para o cumprimento da pena, estendendo os
efeitos do apelo (art. 580-CPP) aos acusados Juvenal Silva, Eliézio
Monteiro Nero e Pedro Emiliano Garcia, para fixar também para eles o
regime inicialmente fechado para cumprimento da pena.
Difícil
a empreitada de encontrar dados processuais que demonstrem tempo de
prisão (se é que houve), entre outros. Porém, temos notícia de
que Pedro Emiliano Garcia foi preso no ano passado – em 14 de julho
de 2012 – na Operação Xawara, da Polícia Federal, por garimpo
ilegal, donde se presume que este se encontrava em liberdade... e
cometendo crimes, como parece ser costume deste (ver link do Processo
n. 0004521-13.2012.4.01.4200)
Notícia
sobre o caso:
Fonte: Folha de São Paulo
Tribunal Regional Federal 1ª Região - STF - STJ
Proyanomami.org
Corte Interamericana de Direitos Humanos
Nenhum comentário:
Postar um comentário