domingo, 30 de junho de 2013

MASSACRE DE HAXIMÚ - Roraima (1993) - 4ª edição

O Massacre de Haximú, em Roraima, no ano de 1993, foi um episódio que marcou os tablóides brasileiros e internacionais, com o assassinato de 16 (dezesseis) índios Yanomamis, caso levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (conseguimos a petição de arquivamento, em julho de 2001 – dá pra ter ciência do histórico processual do caso – acesse o link: http://sdrv.ms/Y5WosR).





Leiam abaixo parte do texto escrito pelo antropólogo Bruce Albert, em 27/09/1993, e publicado na Folha de São Paulo em 10/10/1993, que relata os acontecimentos que antecederam o massacre, bem como o mesmo:

(…) Em meados de 1993 (...) eram cada vez mais frequentes as visitas dos índios aos garimpos em busca de comida e objetos. Numa ocasião, dois donos de balsa prometeram rede, roupa e munição a um jovem líder da comunidade. Mais uma vez a promessa não foi cumprida e este foi tomar satisfações no barracão de um desses empresários. Discutiu com um empregado e acabou por afugentá-lo com um tiro de espingarda. Com o barracão vazio, o índio e seus companheiros cortaram os punhos das redes, jogaram lona e cobertores no mato e levaram rádio e panelas. Depois deste incidente, os garimpeiros decidiram matar os índios se estes voltassem a incomodá-los. Em atritos anteriores, por medida de segurança, já haviam se reapossado de uma espingarda que tinham dado aos índios.
A partir do dia 15 de julho os fatos se precipitam. Um grupo de seis rapazes de Haximu chega a outro barracão na área para pedir comida, bens de troca e, quem sabe, levar de volta a espingarda, conforme recomendação de seus parentes mais velhos. Recebem apenas alguma comida e um bilhete para ser entregue em outro barracão rio acima, com a promessa de que lá eles obteriam mais coisas. No barracão seguinte, encontram uma turma de garimpeiros jogando dominó. São recebidos por uma cozinheira que lê o bilhete, joga-o no fogo e bruscamente manda-os embora com mais alguns mantimentos e roupa. O bilhete dizia: "Faça bom proveito desses otários". Com esse sinal e estimulados por ela, os garimpeiros desse barracão chegam a cogitar de matar os seis rapazes ali mesmo, mas desistem temendo que outros índios estivessem escondidos nas redondezas. Decidem então atacá-los já na trilha de volta às malocas.

Depois de caminhar menos de uma hora, os rapazes Yanomami param para comer o que receberam nos barracões. Chegam então cinco ou seis garimpeiros armados que os convidam para ir caçar anta e visitar um outro barracão. Os índios estranham o convite, primeiro recusam, mas acabam aceitando diante de tanta insistência. Forma-se uma fila indiana tendo na frente um Yanomami seguido de garimpeiros e índios alternadamente. Um pouco adiante, o último Yanomami sai da fila para defecar; passa sua espingarda - a única dos rapazes - para outro Yanomami, e se embrenha no mato dizendo aos outros para seguir adiante. Mas os garimpeiros ficam parados. Bruscamente, um deles imobiliza o braço do índio que segura a arma e atira à queima-roupa em seu ventre com uma espingarda de dois canos serrados. Mais três índios são a seguir fulminados pelos outros garimpeiros. Um dos assassinos contará depois a um companheiro que um dos rapazes se agachou com as mãos no rosto e, tentando escapar da morte, suplicou: "garimpeiro amigo!". Foi sumariamente executado com um tiro no rosto.

O Yanomami que estava no mato, ao escutar os tiros, joga-se no rio Orinoco ali perto e consegue fugir. O jovem de 18 anos que encabeçava a fila também tenta escapar, mas vê-se encurralado entre três garimpeiros que, dispostos em triângulo, se revezam em atirar no rapaz como se fosse tiro ao alvo. Graças à sua agilidade e ao emaranhado da mata naquele local, o rapaz consegue desviar-se dos dois primeiros tiros, mas é ferido pelo terceiro. Enquanto os garimpeiros recarregam as armas, ele escapa e se joga também no rio Orinoco. Atordoado, tenta se esconder, ficando submerso até o nariz. Dessa posição ele vê os garimpeiros enterrar três dos mortos (a quarta vítima nunca chegou a aparecer; mortalmente ferido, provavelmente caiu no rio e foi levado pela correnteza). De repente, à procura de corpos, um garimpeiro desce até o rio e o vê escondido; volta para buscar uma arma, mas o jovem consegue finalmente fugir. Enquanto isso, o outro sobrevivente chega às malocas do Haximu com a notícia dos assassinatos.

Cerca de dois dias depois, volta com um grupo de homens e mulheres ao local onde ficaram os corpos de seus parentes. A meio caminho encontram o adolescente ferido que lhes relata o que viu, inclusive o local onde os cadáveres foram enterrados (essa prática, aliás, é considerada pelos Yanomami como uma profanação). Desenterram os três corpos, procuram o quarto em vão, e levam os despojos para serem cremados a cerca de uma hora e meia de caminhada, mata a dentro. Coletam os ossos carbonizados necessários para oficiar os seus ritos funerários e voltam para casa.

Nos dias que se seguem, organizam a caçada ritual que precede a cerimônia de preparação das cinzas mortuárias (os ossos são pulverizados e guardados em cabaças lacradas com cera de abelha). Depois da caçada (que dura de uma semana a dez dias), são convidadas três aldeias aliadas: Homoxi, Makayu (maloca do Simão) e Toumahi. Terminada a preparação das cinzas, forma-se um grupo de guerreiros para levar a cabo a tradicional incursão de vingança contra os assassinos. Deve-se enfatizar que a tradição Yanomami exige que mortes violentas sejam vingadas com ataques guerreiros onde os alvos são os homens, de preferência os mesmos que perpetraram as mortes anteriores. Nunca se mata mulheres e crianças.

A 26 de julho, depois de dois dias de caminhada, o grupo de guerreiros acampa nas imediações do garimpo. às dez horas da manhã seguinte, embaixo de chuva, chegam à cozinha de um barracão onde avistam apenas dois homens que conversavam em volta do fogo. Um dos Yanomami esgueira-se por detrás de uma árvore e atira. Acerta um dos garimpeiros com um tiro de espingarda na cabeça, matando-o na hora; o outro foge, mas é ferido nas costas e nas nádegas. Os guerreiros continuam sua vingança partindo a cabeça do morto com golpes de machado, atiram flechas no cadáver e, antes de fugir, apanham tudo que encontram no barracão, inclusive cartuchos e a espingarda do morto.

Preparando o ataque

O ataque dos índios enfurece os garimpeiros. Enterram o morto na cozinha do barracão que é então abandonado, levam o ferido para uma pista de pouso a dois dias de caminhada e começam a planejar a retaliação. Fazem duas reuniões onde decidem pôr fim ao assédio dos índios, matando todos os moradores das duas malocas que constituem a comunidade de Haximu, num total de 85 pessoas. Recrutam homens de vários barracões e juntam armas e dez caixas de cartucho. Toda essa operação foi patrocinada, se não encomendada, pelos quatro principais empresários dos garimpos daquela região. Para isso liberaram seus empregados, forneceram munição, armas e abrigaram as reuniões preparatórias para o ataque. Esses quatro empresários de garimpo, alguns deles bem conhecidos no Estado de Roraima, são: João Neto, proprietário rural; seu cunhado Chico Ceará; Eliezio, também dono de uma cantina; e Pedro Prancheta, o autor do bilhete que, como todos os demais, é dono de balsa. Quatorze garimpeiros, fortemente armados (espingardas de calibre 12 e 20, revólveres 38, terçados e facões) põem-se a caminho para executar o plano. Entre eles estão vários que participaram do assassinato dos rapazes de Haximu, além de quatro pistoleiros que haviam sido contratados para garantir a segurança dos empresários.

Enquanto isso, os habitantes de Haximu deixam as malocas e acampam na mata a uma distância segura de contra-ataques. Ficam aí uns cinco dias. Como esperam o convite da comunidade de Makayu (maloca do Simão), para uma festa, eles iniciam a viagem em direção àquela maloca. No caminho pernoitam em suas duas malocas. Na manhã seguinte, a maioria continua a caminhada até uma roça velha entre Haximu e Makayu. Aí ficarão aguardando, como de praxe, o convite formal trazido por mensageiros de seus anfitriões, enquanto três jovens guerreiros voltam para atacar de novo os garimpeiros, por estarem insatisfeitos com a tentativa anterior de vingança. O irmão do morto desaparecido, líder dos três rapazes, tinha especial empenho em vingar a morte do irmão precisamente porque o corpo nunca fora encontrado, impossibilitando a realização de um funeral apropriado. Chegam a um barranco de garimpo e, protegidos pelo barulho das máquinas, esgueiram-se até um garimpeiro que estava trabalhando e atiram. O homem pressente-os e consegue proteger a cabeça; sai ferido apenas no braço que lhe serviu de escudo. Os três razapes fogem e juntam-se aos seus parentes de Haximu na roça velha. Esse ataque ocorre ao mesmo tempo em que os quatorze garimpeiros estão a caminho das malocas de Haximu, a dois dias a pé de seus barracões. Índios e garimpeiros só não se cruzam porque em expedições de guerra os Yanomami evitam as trilhas, andando pela mata fechada.

Chegando a Haximu, os garimpeiros encontram as malocas vazias. Amontoam os utensílios domésticos que ficaram e despejam sobre eles uma grande quantidade de tiros de revólver e espingarda. Incendeiam as duas malocas, encontram a trilha que leva à roça velha, e prosseguem no encalço dos índios.

Entrementes, no dia anterior, os habitantes de Haximu acampados na roça velha já haviam recebido o convite formal de Makayu. Por estarem em pé de guerra, querem abreviar ao máximo a sua estada naquela maloca. Resolvem que apenas os homens e algumas mulheres sem filhos seguirão para lá imediatamente em companhia dos mensageiros, deixando na roça velha todas as mulheres com crianças, além de três homens já velhos e pouco ágeis. Por duas razões essas pessoas ficam no acampamento: por seu ritmo lento de viagem e pelo fato de que mulheres e crianças têm sempre salvo conduto em incursões guerreiras. Pela lógica social Yanomami, elas estariam perfeitamente seguras, mesmo em caso de ataques inimigos. Ficam também no acampamento os três jovens guerreiros recém-chegados que descansam de sua incursão ao garimpo.

O massacre

Na manhã do dia seguinte, a maioria das mulheres no acampamento saem para coletar frutas (ingá) a várias horas a pé da roça velha. Junto com elas vão quase todas as crianças e o líder de uma das duas malocas. No acampamento permanecem cerca de dezenove pessoas, incluindo os três guerreiros que ainda se recuperam. Poucas horas depois, por volta do meio-dia, os garimpeiros chegam ao acampamento e o cercam de um lado. Crianças brincavam, mulheres cortavam lenha e os demais estavam deitados nas redes. Um garimpeiro dispara um tiro e todos os outros o seguem, abrindo fogo cerrado, ao mesmo tempo em que avançam para as vítimas. Em meio ao tiroteio, conseguem escapar os três guerreiros, um homem e uma mulher de meia idade, duas meninas de seis e sete anos e uma menina de cerca de 10 anos, graças à complexa disposição dos abrigos e ao emaranhado da vegetação típica das roças velhas. As duas meninas pequenas e um dos guerreiros saem feridos com chumbo espalhado pelo rosto, pescoço, costas e braços; a menina maior recebe um ferimento muito mais grave na cabeça do qual viria a falecer mais tarde. Do esconderijo, os fugitivos continuam a ouvir gritos abafados pelo estrondo dos tiros. Longos minutos depois, os garimpeiros interrompem o tiroteio e entram nos abrigos para terminar de matar quem ainda está vivo. A golpe de facão matam não só os feridos mas os poucos que não haviam sido atingidos; por fim, mutilam ou esquartejam todos os cadáveres crivados de balas e chumbo.

Ao todo morreram doze pessoas: um homem e duas mulheres idosos, uma jovem de Homoxi que estava de visita, três meninas adolescentes, uma menina de um ano e outra de três e três meninos entre seis e oito anos; três dessas crianças eram órfãs de pais mortos pela malária. A mulher de Homoxi, de cerca de 18 anos, foi atingida por um tiro de espingarda disparado a menos de dez metros e imediatamente por outro a menos de dois. Uma mulher idosa e cega foi morta a pontapés e um bebê deitado numa rede foi embrulhado num pano e trespassado com faca.

Os garimpeiros dão-se conta de que não exterminaram todos os habitantes de Haximu. Por isso, levam duas espingardas que estavam nos abrigos, disparam um foguete para dissuadir possíveis perseguidores, e correm de volta ao garimpo. Semanas mais tarde, ouvem pela Rádio Nacional a notícia do massacre. Caminham por dois ou três dias até à pista de Raimundo Nenê. Ameaçam de morte a quem os delatar, dizendo aos demais garimpeiros que se estes falassem "fariam a mesma coisa que fizeram aos índios". Retornam então para Boa Vista de onde a maioria se dispersa pelo país.

As cremações

Quando finalmente cessa o tiroteio, um dos três guerreiros que escapou ileso do massacre corre até onde as mulheres coletavam ingá, relata o que aconteceu, manda todos se esconderem, retorna ao acampamento, procura sua espingarda e não a encontra. Chama então as mulheres e manda três a Makayu avisar os demais. Elas caminham em disparada durante várias horas. Chegam aos prantos e em meio a grande comoção, contam a tragédia e descrevem de forma intensamente dramática como mulheres e crianças haviam sido mutiladas ou esquartejadas.

Os homens de Haximu partem imediatamente para o local do massacre em marcha forçada e ainda conseguem chegar no começo da noite. Juntam-se aos feridos e demais sobreviventes num clima de choro e terror misturado aos exaltados discursos de revolta dos líderes. A escuridão impede que tratem imediatamente dos cadáveres. O forte cheiro de sangue força-os a passar a noite um pouco afastados da cena do massacre. A cerca de meia hora do local, abrem uma clareira e levantam abrigos improvisados. Ao amanhecer, começam a cremação que seus ritos funerários impõem. Nem o alto risco de serem novamente atacados pelos garimpeiros suplanta o imperativo de dar um funeral apropriado a seus parentes. Assim que começam a juntar os corpos destroçados, surge do matagal ao seu encontro a menina com o crânio aberto a bala, uivando de dores e pavor, enquanto a mãe desesperada corre para ela aos gritos.

Começa a cremação dos corpos, dispostos em posição fetal nas piras crematórias individuais. Os adultos são imediatamente cremados no acampamento; os cadáveres dos mais jovens são levados para o abrigo onde haviam passado a noite e lá também cremados. Mal o fogo acabara de consumir os corpos, os sobreviventes retiram das fogueiras os ossos carbonizados ainda escaldantes e os recolhem em cestas e até em panelas. Inúmeros fragmentos de ossos e alguns dentes ainda ficam entre as cinzas, alguns com sinais de impacto de projéteis de armas de fogo.

A pressa em terminar logo as cremações deve-se à convicção dos índios de que os garimpeiros voltariam para tentar matar os homens. É-lhes inconcebível que a morte daquelas mulheres e crianças fosse considerada pelos brancos como vingança apropriada. A urgência de fugir é tão grande que deixam sem cremar o cadáver esquartejado da visitante de Homoxi, que não tinha ali nenhum parente próximo. Uma cabaça contendo as cinzas de um dos rapazes assassinados no primeiro ataque havia sido quebrada pelos garimpeiros e as cinzas espalhadas pelo chão. A mãe do rapaz tenta juntá-las, mas com a pressa deixa para trás alguns embrulhos de folhas com as cinzas mortuárias que havia recuperado. As cinzas dos mortos são o bem mais precioso dos Yanomami; elas ficam sempre aos cuidados das mulheres, que as levam consigo mesmo quando viajam.

A fuga

Terminadas as cremações, os habitantes de Haximu coletam todos os pertences dos mortos para serem depois destruídos durante os ritos funerários. Começam então uma fuga de várias semanas pela mata fechada, num imenso desvio para despistar os garimpeiros, andando muitas vezes à noite, sem comer, carregando as três meninas feridas. Depois de uns oito dias de caminhada, param numa aldeia amiga, Tomokoxibiú. Nessa noite, morre a menina com o crânio aberto. Seus pais carregam o cadáver pela mata mais um dia antes de cremá-lo no local onde irão acampar.

Sem se deter, os fugitivos cruzam mais tarde os caminhos de duas outras aldeias, Ayaobe e Warakeú. Param numa quarta aldeia, Maamabi. Já haviam cruzado o Orinoco e, rumo ao sul, aproximam-se da fronteira com o Brasil junto ao alto Toototobi, no estado do Amazonas. Chegam, finalmente, à maloca do Marcos no alto Paxotoú, afluente do Toototobi. Era o dia 24 de agosto de 1993, cerca de um mês depois da chacina. Os sobreviventes de Haximu escolheram o alto Toototobi como refúgio por várias razões: é uma área livre de garimpeiros, seus habitantes são gente amiga a quem visitavam com alguma frequência, e há também um posto de saúde ao qual já haviam recorrido várias vezes para se tratar de malária nos últimos três anos.

Ritos funerários

Quando pararam nas duas malocas amigas do lado venezuelano e depois, já na maloca do Marcos, os índios de Haximu foram pulverizando os ossos dos parentes mortos, guardando-os em cabaças lacradas e acondicionadas em cestas de trama aberta ou embrulhadas em panos. Nas grandes cerimônias funerárias intercomunitárias que irão organizar em homenagem aos mortos, as cinzas dos adultos serão enterradas junto às fogueiras domésticas de seus parentes e as das crianças serão tomadas com mingau de banana.

Nessa ocasião, as cabaças, as cestas e todos os objetos que pertenciam aos mortos serão queimados ou destruídos. A destruição dos pertences dos mortos, a obliteração de seus nomes pessoais e o enterramento ou ingestão de suas cinzas nos rituais funerários Yanomami têm por objetivo garantir que o espectro possa viajar definitivamente para o mundo dos mortos nas "costas do Céu" sem a possibilidade de voltar e atormentar os vivos. Para que isso aconteça, é necessário que estes comemorem os seus mortos até que todas as cinzas acabem, durante sucessivas cerimônias mortuárias.

É por isso que o povo de Haximu teve que resgatar os despojos de seus mortos, mesmo sob a forte ameaça de ataques garimpeiros. Não fazê-lo seria condenar os espectros a errar entre dois mundos, assombrando os vivos com uma interminável melancolia, pior que a própria morte. Os 69 sobreviventes de Haximu, refugiados na maloca do Marcos, tentam agora reconstruir a vida, com planos de abrir novas roças e construir novas casas. Entretanto, nos próximos meses, e durante uma boa parte do próximo ano, sua existência estará voltada à organização dos funerais de seus parentes mortos na chacina, e de vários outros que morreram recentemente por malária contraída dos garimpeiros. O seu luto durará até as cinzas terminarem, quando então voltarão à normalidade. Mesmo assim, nunca esquecerão que os brancos são capazes de esquartejar mulheres e crianças, "como espíritos comedores de gente". Os guerreiros de Haximu
afirmam que desistiram de se vingar dos garimpeiros. Poderiam até fazê-lo quando ainda pensavam que esses brancos eram seres humanos com senso de honra. Agora duvidam. Os garimpeiros não são sequer dignos de ser considerados inimigos. Só esperam que os assassinos sejam "trancados" pelos outros brancos para nunca mais voltar às suas terras”.
(fim do relato)





















DADOS PROCESSUAIS

Vinte e dois garimpeiros foram denunciados pelo crime de genocídio (art. 1º, “a”, “b”, “c” da Lei n. 2.889/56, em concurso material com crimes de lavra garimpeira, dano qualificado, ocultação de cadáver, contrabando e formação de quadrilha. Destes, apenas 5 (cinco) foram condenados a 19 (dezenove) anos e 6 (seis) meses de reclusão (sendo a pena-base de 15 anos de reclusão aumentada por força de 2 agravantes – arts. 61, II, “c” e 62, I do Código Penal) pelo genocídio, no juízo singular da Justiça Federal. Condenados, portanto:
Pedro Emiliano Garcia, o “Pedro Prancheta”;
Eliezio Monteiro Neri;
João Pereira de Morais, o “João Neto”;
Juvenal Silva; e
Francisco Alves Rodrigues, o “Chico Ceará”.

Por entender se tratar de “crime contra a vida”, apelaram da sentença condenatória, pois, queriam que o genocídio fosse julgado pelo Tribunal do Júri, recurso conhecido e provido pelo TRF1 que desta forma também entendeu, ANULANDO a referida sentença.

O Ministério Público Federal recorreu ao STJ (REsp 222.653/RR, publicado em 30/10/2000 – link para o acórdão: http://sdrv.ms/14Tf0PK), que possui entendimento contrário ao TRF1, ou seja, genocídio não se trata de “crime contra a vida” e, portanto, permanece a competência do juízo singular. Ademais, este mesmo acórdão decretou a extinção de punibilidade do réu Francisco por seu falecimento.

Chegou, então, ao Supremo Tribunal Federal, por inconformidade das partes com a decisão proferida pelo STJ – RE 351.487/RR, decisão de 03/08/2006, Plenário do STF – link para o acórdão: http://sdrv.ms/14TeCRu.

Uma verdadeira aula sobre concurso de normas, reformatio in pejus e bem jurídico tutelado pelo crime de genocídio, abordando o entendimento de alguns doutrinadores e entendendo por majoritário o posicionamento de que “a conduta incriminada pode recair sobre o corpo humano, lesando-o ou extinguindo a vida, mas, perante o nosso direito positivo, não está aí o bem jurídico tutelado sob a figura criminosa senão modalidades da prática de genocídio”.

Em outras palavras, o homicídio, in casu, é modo de execução do crime de genocídio. E pelo simples fato de nosso ordenamento jurídico não ter enquadrado o genocídio como “crime contra vida”, e considerar, como bem jurídico tutelado, não a vida dos indivíduos, mas sim, a grosso modo, a existência de um grupo, uma coletividade (o acórdão do STF é interessantíssimo!). Sendo assim, os réus foram condenados por genocídio, dizimando parte de uma tribo indígena, sendo aplicada a pena como se tivesse matado 1 (uma) única pessoa (que maravilha!).

Chama a atenção do Ministro Sepúlveda Pertence – e a desta redatora também – o fato de que, “se o genocídio absorve os homicídios, é mais favorável do que a incriminação de homicídios qualificados, ainda que em continuidade delitiva, quando o parágrafo único artigo 71 do Código Penal permitiria a aplicação até o triplo da pena-base”.

Decide o STF, por unanimidade, que o crime de genocídio permanece como competência do juízo singular, indeferindo o recurso dos réus e, como exclusivo destes, impede a “reformatio in pejus”.

Não encontramos notícia acerca do tempo em que estes permaneceram (e se permaneceram) presos. No entanto, encontramos Apelação ao TRF1, com acórdão proferido em 2009 – veja abaixo:

PENAL. PROCESSO PENAL. GENOCÍDIO E ASSOCIAÇÃO PARA O GENOCÍDIO. ARTS. 1º E 2º DA LEI 2.889/56. POVOS INDÍGENAS YANOMAMIS. ALDEIA HAXIMU. LOCALIZAÇÃO. APLICABILIDADE DA LEI BRASILEIRA. COMPETÊNCIA DO JUIZ FEDERAL SINGULAR. AUTORIA E MATERIALIDADE. COMPROVAÇÃO. CRIME DE DANO. OCULTAÇÃO DE CADÁVER. LAVRA GARIMPEIRA E CONTRABANDO. QUADRILHA OU BANDO. REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA.
I. A competência para processar e julgar acusados da prática do crime de genocídio contra etnia indígena, quando não houver denúncia também pela prática do crime de homicídio, é do juízo federal singular, e não do Tribunal do Júri Federal, porquanto o objeto jurídico tutelado nesse delito não é a vida em si mesma, mas, sim, a sobrevivência, no todo ou em parte, de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.

II. Independentemente de os fatos terem ocorrido em território brasileiro ou venezuelano, não está afastada a jurisdição da Justiça brasileira para julgar o crime de genocídio, consoante preceitua a letra d do inc. I do art. 7º do Código Penal, uma vez que os acusados são brasileiros e domiciliados no Brasil. Trata-se de caso especial de extraterritorialidade incondicionada pelo princípio da justiça universal. Há aplicação da lei brasileira ainda que o agente seja absolvido ou condenado no estrangeiro, segundo dispõe o § 1º do art. 72 do Código Penal.

III. Não sendo possível a realização do exame cadavérico, tendo em vista que os índios, não se afastando dos seus costumes, queimaram os corpos de seus entes, pilaram-nos, transformando-os em cinza, guardando-os em cabaças, a comprovação da morte se dá pelos depoimentos das testemunhas que viram os corpos estraçalhados à bala e a facão, o que supre o exame de corpo de delito, consoante disposto no art. 167 do Código de Processo Penal.

IV. Prova testemunhal uniforme, precisa, categórica, constante dos autos, não deixa dúvidas da ocorrência dos fatos, bem como de que os acusados Pedro Erniliano Garcia, vulgo Pedro Prancheta; Eliézio Monteiro Nero, vulgo Eliezer; Juvenal Silva, vulgo Curupuru; Francisco Alves Rodrigues, vulgo Chico Ceará; e João Pereira de Morais, vulgo João Neto; foram os autores do crime de genocídio tipificado no art. 1º, letras a, b e c da Lei 2.889/56.

V. Inexistindo prova suficiente da participação dos acusados Wilson Alves dos Santos, vulgo Neguinho, e Waldinéia Silva Almeida, conhecida por Ouriçada, deve ser mantida a sentença que os absolveu da prática de tais delitos.

VI. Diante de exame pericial, nas duas malocas e três acampamentos (tapiris) utilizados pelos índios, na região de Haximu, o qual constatou que as cabanas e os tapiris foram destruídos pelo fogo e por bala e que foram encontrados panelas com perfurações de projéteis de arma de fogo, cartuchos de arma de fogo deflagrados, cabelo humano, fragamentos de projéteis encravados em árvores e no cercado da maloca, caracterizado está o crime de dano, previsto no art. 163, incisos I, II, e IV, do Código Penal.

VII. A prova testemunhal confirma que os acusados praticaram o genocídio e ocultaram os cadáveres dos índios mortos na chacina, enterrando-os para que não fossem descobertos, o que caracteriza o crime de ocultação de cadáver.

VIII. Inexistindo prova dos crimes de associação para o genocídio, de lavra garimpeira, de contrabando e de formação de quadrilha ou bando, deve ser mantida a sentença na parte em que ABSOLVEU os acusados da prática de tais delitos.

IX. Fixação do regime inicialmente fechado para cumprimento da pena de reclusão. A vedação à progressão do regime de cumprimento da pena para os crimes hediondos é inconstitucional. Fere o inciso XLVI do art. 5º da Constituição Federal. Essa vedação é tão hedionda como o próprio crime. A inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90 foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar o HC 82.959-SP. X. Não sendo conhecido o recurso de alguns dos acusados, estende-se a estes os efeitos benéficos da apelação conhecida, a teor do art. 580 do Código de Processo Penal. (TRF1. APELAÇÃO CRIMINAL 1997.01.00.017140-0/RR Relator: Juiz Federal Tourinho Neto Julgamento: 01/09/09)

Em consulta processual realizada em 12/03/2012, encontramos o referido complemento a essa decisão de apelação (http://www.trf1.jus.br/Processos/ProcessosTRF/ctrf1proc/ctrf1proc.php?tipoCon=2&setor=&proc=150500919974010000):
=> (…) do Ministério Público Federal para condenar os acusados Pedro Emiliano Garcia, Eliézio Monteiro Neri, Juvenal Silva e João Pereira de Morais, à pena de 01 (um) ano e 02 (dois) meses de reclusão e ao pagamento de 12 (doze) dias-multa, por infração ao art. 211 do CP, mantida a absolvição dos acusados Waldinéia Silva Almeida e Wilson Alves dos Santos; deu parcial provimento à apelação de João Pereira de Morais, tão-somente, para fixar o regime inicialmente fechado para o cumprimento da pena, estendendo os efeitos do apelo (art. 580-CPP) aos acusados Juvenal Silva, Eliézio Monteiro Nero e Pedro Emiliano Garcia, para fixar também para eles o regime inicialmente fechado para cumprimento da pena.


Difícil a empreitada de encontrar dados processuais que demonstrem tempo de prisão (se é que houve), entre outros. Porém, temos notícia de que Pedro Emiliano Garcia foi preso no ano passado – em 14 de julho de 2012 – na Operação Xawara, da Polícia Federal, por garimpo ilegal, donde se presume que este se encontrava em liberdade... e cometendo crimes, como parece ser costume deste (ver link do Processo n. 0004521-13.2012.4.01.4200)


Notícia sobre o caso:

Fonte: Folha de São Paulo
           Tribunal Regional Federal 1ª Região - STF - STJ
           Proyanomami.org
           Corte Interamericana de Direitos Humanos

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