A
DESCOBERTA
Trinta
e um de março de 1997. O Jornal Nacional, programa de reportagem da
Rede Globo, exibiram imagens que denunciavam a violação de direitos
humanos praticada por policiais militares na Favela Naval, em
Diadema, São Paulo. As cenas de extrema crueldade revelavam
policiais
militares extorquindo dinheiro, humilhando, espancando e executando
pessoas, no que, oficialmente, seria uma operação de combate ao
tráfico de drogas.
O
repórter responsável pela matéria, Marcelo Rezende, recebeu a
denúncia em um bar, através de imagens que foram gravadas no local
dos fatos por um cinegrafista amador nos dias 3, 5 e 7 de março de
1997 e, pelo conteúdo chocante, levou cerca de 5 dias confirmando a
veracidade daquela informação. Montou uma equipe com 13
profissionais, que o ajudaram nas investigações, localizaram Gerson
Capucci, que dirigia o carro no qual foi assassinado o mecânico
Mário José Josino, que estava de férias e tinha ido visitar um
amigo. Também foram localizadas várias outras testemunhas das
violências policiais, como o rapaz que levou o tiro atrás do muro,
Sílvio Calixto, que sobreviveu. Conseguiram localizá-lo e o
convenceram a dar o seu testemunho. A equipe de reportagem descobriu
que, nos meses que antecederam o episódio, dezenas de denúncias
haviam sido encaminhadas às autoridades, QUE NÃO TOMARAM QUALQUER
PROVIDÊNCIA.
Já
na primeira cena, os PMs param os carros e agridem com violência os
ocupantes, que não oferecem qualquer resistência. O motorista de um
dos automóveis é esbofeteado e levado para trás de uma parede por
um dos policiais. Os outros conversam tranquilamente enquanto se
ouvem os gritos de súplica do rapaz que é espancado. O cinegrafista
consegue pegar parte da cena em que o policial espancador chama o
parceiro e, segundos depois, dispara um tiro. Os dois PMs então se
afastam. Um deles guarda a arma e ri.
As
imagens também mostram que o pelotão, de volta ao mesmo local dois
dias depois, passa a cobrar pedágio para liberar as pessoas paradas
no bloqueio. Não tendo como incriminar o dono de um Fusca, um
soldado se vinga furando os pneus do carro. Em outra cena, depois de
muitas agressões, um policial aparece assassinando um passageiro
dentro de um carro.
No dia
seguinte à denúncia da violência da PM paulista, o repórter
Ernesto Paglia foi até a Favela Naval e mostrou os moradores
assustados. O repórter identificou seis dos dez policiais do 24°
Batalhão da Polícia Militar envolvidos na barbárie: o sargento
Reginaldo José dos Santos, o cabo João Batista de Queiroz e os
soldados Nelson Soares da Silva Júnior, Paulo Rogério Garcia
Barreto, Rogério Neri Bonfim e Otávio Lourenço Gambra, conhecido
como “Rambo”. Ainda no dia 2 de abril os repórteres da Globo
identificaram o tenente Wilson Góis Júnior, que estava na operação
em Diadema mas que, até aquele momento, sequer tinha sido citado nas
investigações. Localizaram também Ricardo Luis Buzeto, que estava
foragido. Numa entrevista exclusiva ao repórter Carlos Tramontina, o
cabo afirmou não ter participado das agressões. Disse que tinha
apenas observado.
A
Assembléia Legislativa de São Paulo anunciou a criação de uma CPI
para apurar o caso e, em 3 de abril, foi aprovado pelo Congresso o
projeto de lei que transformava a tortura em crime com pena de até
21 anos de prisão (Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997). Também no
dia 3, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou a
proposta de emenda constitucional que federalizava os crimes contra
os direitos humanos. Em setembro daquele ano, o repórter Marcelo
Rezende recebeu o Prêmio Líbero Badaró de jornalismo.
O
próprio presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, por
meio do seu porta-voz, tornou pública sua revolta. A Assembléia
Legislativa de São Paulo logo anunciou a criação de uma CPI
(Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar o caso, e o
governador de São Paulo, Mário Covas, assinou a exoneração dos
oficiais da PM responsáveis pela região. Os policiais envolvidos no
episódio foram presos.
PERSONAGENS
Segundo
informações, Otávio Lourenço Gambra era o tipo de policial que
uma comunidade gostaria que patrulhasse suas ruas: pai dedicado de
duas meninas menores na época, frequentava cultos evangélicos
quando podia, ex-carteiro com o 2º grau completo. Um homem corajoso
e ousado que, certa vez, salvou uma criança de 9 dias ao tirá-la
das mãos do pai ensandecido que ameaçava estrangulá-la. Aumentava
o salário que ganhava lotado na 2ª Cia. do 24º Batalhão fazendo
“bicos” como segurança de postos de gasolina, borracharias e
açougues.
Apesar
disso, nunca se interessou em prestar concurso para cabo e depois
para sargento... ganhava como policial o que seria hoje equivalente a
R$ 400 (quatrocentos reais). O dono de um dos açougues onde ele
trabalhava o descreve como um homem simpático, educado, alegre, que
nunca pediu carne de graça, nem sequer um presunto... não acreditou
quando viu Gambra nas imagens fazendo o que ele intitulou de
“barbaridades”...
Em 12
anos de carreira recebeu 39 elogios por ocorrências bem-sucedidas,
como apreensão de carro roubado e flagrantes de assalto. Seu último
elogio ocorreu em 18 de março de 1996 onde, segundo o relatório
“demonstrou lealdade, trabalhou com afinco, atendeu aos anseios da
comunidade em bem lhe servir, inclusive com suas horas de folga e
abdicação do seio de sua família”. Dessa forma, tinha o apreço
e respeito de seus chefes; segundo o coronel Pedro Pereira Matheus,
seu ex-comandante (afastado do cargo no dia 02 de abril de 1997),
todo batalhão tem soldados problemas, mas Gambra nunca esteve entre
eles.
Na favela
Naval, Gambra era conhecido como “Rambo”, um fortão que batia em
gente indefesa e se aproveitava da farda para torturar, extorquir,
roubar, uma personalidade totalmente diferente do que sua ficha
representava. Era o personagem principal das cenas de tortura e
assassinato que foram ao ar, onde ele e mais 9 policiais militares
foram flagrados aterrorizando moradores.
Gambra
aparece descendo o cassetete sobre as costas do assistente de
departamento pessoal, Jefferson Sanches Caputi e, mais tarde, na
mesma noite, matou o conferente Mário José Josino. Na gravação,
Gambra é visto dando dois tiros displicentes, como quem dispara para
uma lata de lixo e nem quer saber o que aconteceu depois. No entanto,
sua “ficha de tiro” era medíocre: um teste de 1987, em 18
disparos de 38 acertou apenas 5 no alvo; posteriormente, em outro
teste, de 22 tiros disparados com uma espingarda, acertou 7.
Mas, na
favela Naval, não era conhecido apenas pela agressividade, mas
também pela prática de crimes menores. Segundo alguns moradores,
“ele chegava muitas vezes sozinho, fora de serviço, encostava num
poste de braços cruzados e ficava sacando quem subia e quem descia
(…) Abordava qualquer um, tomava dinheiro, relógio, o que o cara
tivesse”. De acordo com os moradores, Gambra mandava e os demais
obedeciam, embora sua patente fosse mais baixa que de alguns dos
demais policiais. Outra testemunha diz já ter visto Gambra investir
contra um idoso para atacá-lo com coronhadas de revólver, e um
adolescente diz que Gambra apagou um cigarro em sua cabeça.
Para os
padrões da PM, a ficha de Gambra tinha infrações leves: em 1988
envolveu-se em um acidente de trânsito por negligência e foi
suspenso; em 1989, foi detido por chegar 25 minutos atrasado à
companhia; em 1994, passou por uma lombada em alta velocidade e, em
outra ocasião no mesmo ano, foi advertido por estar com os cabelos
crescidos acima do padrão. Nada que se compare à ficha de quatro
dos componentes do que ficou conhecido como o “bando da madrugada”.
Um
soldado foi acusado de ato libidinoso por forçar um menino à
prática de ato sexual, resistência seguida de morte e resistência
seguida de lesão corporal. Um outro policial respondia por 2
homicídio e 3 resistências seguidas de morte.
O soldado
Rogério Neri Bonfim, com físico de halterofilista, mostra seu
talento para tapas e murros; o soldado Nelson Soares da Silva Júnior
bate nos pés do motorista Jefferson Caputi com o cassetete, enquanto
Gambra faz o mesmo com um porrete nas costas o rapaz. O soldado
Maurício Gomes Louzada também o agride. O soldado Júnior também
aparece espancando uma vítima em um beco; o cabo João Batista de
Queiroz assiste a tudo. O sargento Reginaldo José dos Santos fura o
pneu de um Fusca branco.
Os
protagonistas da situação eram (patentes na época):
→
soldado Otávio Lourenço Gambra, o “Rambo”;
→
sargento Reginaldo José dos Santos;
→
soldado Rogério Neri Bonfim;
→
soldado Paulo Rogério Garcia Barreto (condenado em 1998 à 4 anos e
7 meses de detenção em regime semiaberto – foi libertado após o
julgamento);
→ cabo
Ricardo Luiz Buzeto;
→
soldado Demontier Carolino de Figueiredo;
→
soldado Nélson Soares da Silva Júnior;
→
soldado Maurício Gomes Louzada (condenado à 27 anos de prisão);
→
soldado Adriano Lima de Oliveira (apenas punido administrativamente);
→ cabo
João Batista de Queiroz (condenado em 1998 à 4 anos e 2 meses de
detenção em regime semiaberto – foi libertado após o
julgamento).
Truculentos
na favela Naval, policiais tremeram ao depor na delegacia de Diadema:
algemados e acuados pelos gritos da população que aguardava do lado
de fora, 3 deles choraram, 2 se negaram a falar e 7 chamaram a sessão
de pancadaria de “operação de rotina”.
RESULTADO
No dia 11
de maio de 1999, a 3ª Câmara Criminal do TJSP ANULOU a primeira
condenação de Otávio às penas de 59 anos e 6 meses de prisão,
por homicídio qualificado, 3 tentativas de morte qualificadas, e
ainda REDUZIRAM a pena da condenação pelo abuso de autoridade para
1 ano e 6 meses a pena (era de 5 anos e 6 meses). Mesmo assim, teve
que aguardar o segundo julgamento na prisão. Para os
desembargadores, os jurados decidiram contra as evidências dos
autos.
Em 15 de
maio de 1999 saiu a decisão de seu segundo julgamento: 47 anos e 3
meses por 2 tentativas de homicídio contra Jefferson Caputi e o
músico Silvio Calixto, além de 1 ano de detenção por crime de
perigo contra a vida de Antonio Carlos Dias. Em 24 de abril de 2001,
mais uma vez o TJSP REDUZIU essa pena para 15 anos e 2 meses de
prisão.
Otávio
Lourenço Gambra conseguiu junto ao STF a progressão de regime para
o SEMIABERTO, em agosto de 2005 (HC n. 86.541/SP – deferido por
unanimidade), decisão antes concedida pelo STJ, em 2004 (HC n.
38.206/SP).
Hoje,
nenhum dos envolvidos está preso, no entanto, sofreram inúmeras
sanções. Três foram demitidos e 6 foram expulsos – segundo a
Corregedoria, a expulsão difere da prisão por ter um caráter
desonroso para o policial. Essas condenações derivaram de lesões
corporais sofridas pelas vítimas.
Dois
outros envolvidos foram punidos à época pela polícia militar e
hoje continua na corporação: o primeiro tenente bombeiro da
corporação, Wilson Góes Júnior que, segundo a PM, os policiais
aguardavam ele sair para a ronda para que pudessem atuar de forma
inapropriada e não tinha qualquer participação nas ações, mas
foi punido com prisão administrativa de 15 dias do mesmo jeito; e o
soldado Adriano Lima de Oliveira, também punido administrativamente,
e continua na instituição – estava em estágio probatório na
época.
Os outros
oito policiais foram julgados por abuso de autoridade, cujas penas
variam entre 10 dias e 6 meses de prisão, mais a perda do cargo na
PM. Só quem respondeu por homicídio foi Gambra.
Em
outubro de 2000, houve uma sentença em 1ª instância que concedeu
indenização por danos morais de R$ 50mil para cada um dos irmãos e
R$ 150mil para a mãe de Mário José Josino, assassinado por Gambra
no dia 7 de março de 1997, na Favela Naval.
Entrevista concedida ao repórter Marcelo Rezende
Fonte:
Globo Memória
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Veja Digital
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– Folha de São Paulo
JC
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